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Estamos chegando ao fim do dilema do operador?

Estamos chegando ao fim do dilema do operador?

Bom, para entender o contexto e a razão pela qual acredito ser essa uma reflexão pertinente, é preciso primeiro conhecer um pouco do perfil de geração de energia elétrica do Brasil. Dada a abundância de recursos hídricos aqui existente, o Setor Elétrico Brasileiro historicamente se desenvolveu em base essencialmente hídrica. Em termos de potência instalada, a participação de usinas hidrelétricas soma 63% [1] (contra 16% no mundo [2]), enquanto a de termelétricas totaliza 16% (contra 65% no mundo). Aliás, se forem agregadas as fontes eólica, solar e biomassa, o percentual de participação de fontes renováveis resulta em 83%, certamente uma das maiores do mundo. Há de se comentar também que, em termos de energia gerada, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) registrou meses cuja contribuição somente de hidrelétricas chegou a patamares superiores a 80% [3].

Outro aspecto único encontrado no Brasil é o tamanho de seu sistema elétrico. Praticamente 99% do sistema é interconectado por linhas de transmissão. Em teoria, isso permite com que a energia gerada em uma região possa ser transmitida para outras regiões, situação que é muito bem aproveitada dada a diversidade hidrológica brasileira. Assim sendo, períodos de chuvas abundantes em uma região podem compensar estiagens outras, mantendo a base de geração elétrica essencialmente hídrica. A demanda energética adicional é complementada principalmente por energia térmica e, mais recentemente, eólica.

Porém, há um problema: nós não sabemos com confiabilidade suficiente se os próximos meses serão chuvosos ou não. Isto posto, vamos nos colocar agora no papel de operadores do sistema e pensar em qual a melhor decisão que poderíamos tomar para suprir a demanda energética do país: será que devemos usar as hidrelétricas ou as termelétricas? Vejamos, se optarmos em priorizar hidrelétricas, os níveis dos reservatórios baixarão em um primeiro momento. Caso a hidrologia for favorável, isso não é problema, pois os volumes de água dos reservatórios serão restabelecidos ao final do horizonte de planejamento. Por outro lado, se a hidrologia não for favorável, o sistema corre risco de déficit energético (nome bonito para apagão, ou racionamento). Em outra esfera, caso decidirmos gerar termelétricas e a hidrologia futura for desfavorável, acertamos mais uma vez, pois os níveis dos reservatórios estarão elevados para garantir o suprimento da demanda futura. Entretanto, se as chuvas forem favoráveis, as usinas hidrelétricas sofrerão com vertimentos e, portanto, desperdícios de energia.

Pois bem, este é o conhecido dilema do operador. O ONS faz decisões dessa natureza semanalmente para um horizonte temporal de até 60 meses à frente. Além das metas energéticas por usina, dessas decisões saem os custos de operação do sistema, os quais devem ser os mínimos necessários para atender com segurança à demanda por energia. É nesse ponto que os despachos termelétricos se tornam muito relevantes, pois os custos com combustível são determinantes para a composição dos custos da operação do sistema como um todo.

A principal condição de contorno utilizada pelo ONS para resolver o seu dilema semanal é o nível atual de armazenamento de água nos reservatórios de regularização (esses reservatórios têm a característica de permitir com que o nível de água varie no decorrer do ano, para possibilitar guardar água em períodos chuvosos e utilizá-la em períodos mais secos). Parece natural pensar que ter ou não água armazenada disponível é um ponto chave para tomar a decisão de utilizar hidrelétricas ou térmicas nos próximos meses, não? Caso haja reservas suficientes, a exigência de térmicas tende a ser menor ao longo do horizonte de planejamento, bem como o custo de operação do sistema.

Mas é aí que o problema ganha uma nova dimensão: até o início da década de 2000, o Brasil contava com boa capacidade relativa de regularização frente à demanda energética. Trocando em miúdos, os reservatórios de regularização, em conjunto, permitiam acumular água em escalas superiores a um ano, o que amenizava a preocupação com as incertezas das chuvas futuras. A partir daquela época, entretanto, as decisões de expansão do parque hidrelétrico passaram a priorizar usinas a fio d’água (as que usam o nível de água como fator importante para a geração de energia, mas que não têm a capacidade de guardar água em escalas superiores a um mês). Desde então, observou-se um descolamento dos crescimentos da demanda em relação à capacidade de regularização, o que passou a exigir maior participação de usinas térmicas no sistema.

Em paralelo a esses acontecimentos, o Brasil observou aumento significativo da participação de fontes eólicas em sua matriz. Mais recentemente, a fonte solar também vem aumentando sua participação em ritmo acelerado. Os dados mais atuais mostram que essas duas fontes em conjunto já representam mais de 10% da potência instalada do sistema (aqui pode incluir a mesma nota de rodapé 1). Adicionalmente, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) em seu mais recente Plano Decenal de Expansão de Energia [4] indica que esse percentual poderá superar os 20% no ano de 2029. O interessante é que tanto as eólicas quanto as solares têm a característica de serem fontes intermitentes e não despacháveis. Ou seja, a grande variabilidade na velocidade do vento no decorrer do dia, bem como nas taxas de radiação solar em dias com nebulosidade, faz com que essas usinas gerem energia quando a natureza está favorável. Além disso, essa energia deve ser escoada imediatamente pelas linhas de transmissão, por conta da falta de sistemas de armazenamento (baterias de maior porte ainda estão sendo desenvolvidas).

Nesse contexto, os reservatórios de regularização poderiam funcionar como as grandes baterias do Sistema Elétrico Brasileiro. Mas, como mencionado, há cerca de duas décadas a capacidade relativa de regularização vem sofrendo quedas progressivas. Portanto, quase que por eliminação, a alternativa recai sobre as térmicas. Em particular, as movidas a gás natural, menos poluentes e que podem se aproveitar de ofertas nacionais de combustível (em particular as reservas do pré- e pós-sal). O já citado Plano Decenal de Expansão de Energia 2029 trabalha com alternativas que buscam viabilizar o aumento da participação de térmicas especificamente alimentadas a gás natural, citando que esse é o principal combustível a ser utilizado na próxima década no Brasil.

Muito bem, o que temos então é: menor capacidade de regularização, maior participação de térmicas e aumento de fontes intermitentes de geração de energia. São três elementos que, se pararmos para pensar, tornam a realidade energética do Brasil cada vez mais semelhante com a do restante do mundo. Portanto, chegamos ao ponto principal: o dilema do operador, está deixando de ser um dilema. Estamos caminhando para um ponto no qual as decisões do ONS tenderão a manter as térmicas ligadas por longos períodos para dar suporte às fontes intermitentes, pois os reservatórios já não oferecerão, sozinhos, segurança para o sistema operar sem risco de déficits. As consequências disso tudo, sejam elas em termos energéticos ou de custos de operação, ainda carecem de estudos e análises diversas.

Novos tempos requerem novas alternativas e, quem sabe, novos dilemas.

Escrito por: Daniel Detzel

Doutor em Recursos Hídricos, especialista em Hidrologia Estocástica, Séries Temporais, Planejamento Energético, Engenharia Hidrológica e Professor da Universidade Federal do Paraná na área de energia.

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[1] Sistema de Informações de Geração da ANEEL, com dados de 2020 (http://www.aneel.gov.br/siga)

[2] Agência Internacional de Energia, com dados de 2017 (https://www.iea.org/reports/electricity-information-2019)

[3] Histórico da operação – Geração de energia (http://www.ons.org.br/Paginas/resultados-da-operacao/historico-da-operacao/geracao_energia.aspx)

[4] https://www.epe.gov.br/pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/plano-decenal-de-expansao-de-energia-2029

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